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quinta-feira, 18 de março de 2010

Caixa de música

Tudo que nos teletransporta num pote de vidro transparente pode quebrar no meio do caminho, sem ao menos termos tido a chance de chegar. Todos sabiam disso, as chances de tudo evaporar eram claras e jamais foram excluídas daquele caderno gigante de possibilidades, por isso mesmo ela se dedicou ao máximo para entender. Depois de longos três minutos examinando e cacando motivos em sua mente, descobriu que tudo era inútil e que a única coisa que ela poderia entender era alguém que todos os dias ela via, diante de um espelho: ela mesma. Nada e nem ninguém mais. Depois caiu num sono profundo, do qual não fazia muita questão de acordar, enquanto isso sonhou e pesadelou durante quatro horas:

Havia deixado de ser humana, coisificada num mundo estranho. Estava tudo escuro demais pra perceber o que havia a sua volta, tocou em algo que parecia ser uma parede e seguiu, sem temer. Quem sabe o chão logo sumiria abaixo dos seus pés, quem saberia o que ela iria encontrar? De alguma forma só ela saberia, pois não seria nada que ela já não havia sentido ou visto já que seu inconsciente pode esconder muito mais do que todas as pessoas que haviam aparecido na sua vida. Pessoas são estranhas. E o inconsciente era um mistério oculto nela mesma, finalmente o chão sumiu, e sinceramente não foi uma surpresa. Então estava numa sala, gigante e clara. Inundada de um líquido cintilante, em todas paredes haviam quadros de musas adormecidas, criando forcas para fugir. Forcas de algo maior e desconhecido, algo que transmitia vibracoes ruins pra toda sala. Porém, bem no meio havia uma musa quase pronta, já havia passado por todas etapas de sua criacão; da pintura se tornou relevo, e do relevo atirou seus bracos pra fora do quadro e escapou, estaria pronta pro seu propósito? Talvez sim, mas ainda estava sem forca pra andar, ela não ousou olhar no rosto dessa musa, que estava com um vestido roxo vibrante, havia medo. Ela sabia que sua presenca havia sido percebida, entao as musas dos quadros abriram os olhos, e a juncao do ódio de todas deu forca para a musa de roxo vibrante que instintivamente olhou pra trás. Ela não tinha rosto, qual seria sua identidade? Estariam relacionadas de alguma forma? Jamais saberia, e logo saiu nadando daquela sala maldita, que por mais luz que estivesse contendo, emanava as piores sensacões. Era perturbador. Mas pra onde fugir, estava dentro de si mesma, tantas vezes precisou repetir pra acreditar, que os limites de seu corpo continham mais do que ela podia deter, seu medo escorria pelos olhos, lágrimas das quais ela jamais se livraria, pois logo secariam em seu rosto e lá estariam absorvidas novamente pelo corpo estático e frio.

E assim acordou, aflita. Havia fugido da sala em seu sonho, mas com muita dificuldade e colocando tanta forca nisso que seu corpo teve que acordar. Era essa a razão, o motivo pelo qual estava se sentindo tão fraca. Levantou e foi até a geladeira. Algo estava acontecendo, sentia seu coracão apertado. Agora estava curiosa com o que se passava naquela sala, queria entender melhor, queria poder salvar aquelas criaturas dos quadros, talvez todas juntas formassem algo bonito e livre. Olhou para a gaveta, no silêncio ao redor encontrou a chave afiada para sua dúvida: era uma faca nova, jovem e tão pouco usada até então. Decidiu que abriria seu peito e encontraria esse mundo que a assustou tanto, tiraria todo ele dentro de si, libertaria as musas e tudo ficaria bem. A dor era intensa, mas nada comparado com o que ela viria a sentir durante anos caso não se livrasse disso. Diante de um espelho ela estava agora, com o peito aberto, seu coracão a vista, com uma lanterna na mão observava e procurava, caso não achasse, nem sabia o que iria fazer. Mas lá estavam elas, bem no centro do seu coracão. Girando como bailarinas de uma caixa de música, cada uma em seu quadro, e a musa de roxo vibrante estava nua e imóvel, onde estaria seu vestido e sua forca para dancar? Afinal ela achava que a forca da musa vinha dos quadros, mas não. Faltava algo. Então ela percebeu que não havia sido a forca das musas dos quadros que haviam dado forca pra musa de roxo no sonho, e sim o contrário. Como ela foi capaz de subestimar tal criatura sobrenatural? Então sentiu uma pontada de tristeza tão grande, ao pensar que havia também sido subestimada tantas vezes, e sem perceber isso deu forca para a musa de roxo (que embora não estivesse mais de roxo, era identificada assim!), e ela comecou a girar, girar, girar. E então, deu pra notar que havia uma linha, um fio bem fino que a ligava a todas musas dos quadros, e ao girar ela comecou a construir um vestido das musas,que se desfaziam a cada giro, em poucos segundos nada sobrou dentro das molduras e a musa estava radiante com seu novo vestido. Agora ela possuia um rosto e era o mesmo da mulher que estava com o peito aberto diante do espelho.

Um comentário:

  1. Sabe que já passei por isso? Na verdade, passo, periodicamente. Mas, incrível e instantaneamente momentos após, me esqueço e os ciclos se repetem como experiências inéditas. Hehe, aiai.

    Tudo lindo por aqui. Vou linkar.
    Beijos!

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