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terça-feira, 4 de maio de 2010

Primavera


Emperrada na nascente florida onde ela guarda as
mágoas amadas. Assim estava Marga.
Não começou ali, mas certamente foi ali que foi visto,
pobre ser sem identidade moral, carregando duas
pedras, pedras que desceriam garganta abaixo
afim de conter algo,talvez de preveni-lo contra a realidade
que fazia com que ele se odiasse cada vez mais.
Difícil de compreender a identidade da alma, quando
essa mesma não quer ser entendida.
Yan descia a rua de sua casa, certo de que no fim
seria punido por algo que naturalmente ele teria
feito, mais uma vez estaria arrependido, porém
jamais estaria convicto de que não o faria de novo,
seja qual fosse a punição, nem que fosse cada vez
mais severa.
O importante era ser desculpado, para logo poder
pecar novamente e assim, nesse rosário concluir
uma procissão inteira de dores.
Marga o observava, ali, no limiar do seu sonho
e também do seu pesadelo. Ela nada podia evitar,
pois afinal, a culpa era dele, de toda essa
imaginável situação.
Ao mesmo tempo se sentia incompleta, ele fazia
parte do seu processo evolutivo nesse plano confuso,
ele era o reflexo dos seus sonhos inacabados, ele
era o pesadelo que ela não vencia, cujo desafio
era sempre maior que o propósito da luta.
Correu em sua direção, Marga correu tudo que pode
e enfim o parou, afobada e quase sem ar.
__Yan, você sabe muito bem aonde ir,sempre soube.
Como encerrar um caminho percorrido por tantos
dias?! Eu posso te contar a nova versão
dessa história, cujo fim eu acabei de inventar.
Yan parou, se indagava mil vezes, mil perguntas,
mil sinos tocam e uma única Marga, pálida e
invernosa, seu casaco azul estava salpicado
de neve, onde estaria Marga nesse verão?!
Da onde surgiu e em que tempo habitava?!
Queria entender se não estaria delirando,
se estaria finalmente temeroso de sua punição
e convencido de que jamais pecaria, pararia
de vez ou seria arrastado para o mundo
gelado de Marga?! Sim. Finalmente.
Yan nada disse, nada verbal, aquiesceu
lentamente e uma lágrima rolou de seu
olho esquerdo, seu único olho humano.
Nesse instante seu olho de vidro trincou,
e escorreu o que podemos considerar
como sendo uma lágrima de sangue.
Marga observava tudo em silêncio, seria essa
a noite em que estaria completa? A noite
em que salvaria Yan de seu pecado, seu mito.
Yan colocou as pedras no chão,deu sua mão para Marga,
a mão dela estava fria, frágil. Então disse algumas
palavras que soaram como uma ofensa para Marga:
__Não entendo. Está verão e seu casaco está
cheio de neve. De que diabos de lugar você veio?
Ele não entendia.Ainda não. Ela refletiu
bastante antes de responder, soltou a mão de Yan,
que a olhava assustado:
__Você vive o verão pois ignora o inverno.Não
importa o quão gelado esteja o mundo, você
simplesmente não se importa, despreza os flocos
de neve que caem diante do seu nariz, afinal
o que importa é você fazer o que você quer.
Mas afinal, quer ou não conhecer a verdade?
Por alguns segundos Yan se sentiu seguro o suficiente para
revidar a resposta de Marga, porém parou, ele não
sabia o porquê de tudo aquilo, do mesmo caminho sendo
percorrido, da mesma sensação de glória ao ser excluso
do erro e disse:
__Eu já posso sentir o frio.
Marga ficou mais aliviada, ele aceitou segui-la de uma
forma singela. O destino seria o bosque, a solução
seria encontrada, ele não mais pecaria, ela não
mais estaria condenada a nascente florida,
a questão era escrever nas notas, rodapés,
nas paredes, nas flores. Seriam distribuidos
recados por todos os lados, as letras formariam
cirandas e mais cirandas, após isso eles deviam
apenas ler, em voz alta, invocar o final tão
desejado e por fim vivê-lo, transformado e digno.
Quem sabe dessa forma a primavera pudesse enfim chegar.

Um comentário:

  1. para a próxima estação, e a próxima, e a diferente repetição de cada próxima estação....

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